HISTÓRIAS



- Da grande Nação Romeira das Alagoas, Pe. Murilo foi se chegando da comunidade de Xingó e por lá foi diversas vezes, sobretudo nos últimos anos, durante a realização do que se denominara Cenáculo Teresiano, sob a coordenação de seu pároco, o Pe. Siso. Levava muitos juazeirenses e até o bispo D. Fernando. Num destes eventos, me relataram que, durante uma cerimônia, um fato inusitado ocorria. Vinha uma pessoa com um balde de água e dava, em pleno altar, um banho no padre Siso, ensopando os paramentos. Pe. Murilo achava aquilo uma coisa desproposital. Nesta hora, dele se acercou o Wellington que disse: Pe. Murilo, qualquer dia destes nós vamos fazer isto com o Sr. no altar da Mãe das Dores. Pe. Murilo encarou Wellington e disse um daqueles “Vôte”, bem definitivos, e nunca mais se falou nisto.

- Quando Pe. Murilo chegou ao Juazeiro, o imóvel residencial da Rua Pe. Cícero, 239 (vizinho a Assunção) era de propriedade do vigário Mons. José Alves de Lima. Algum tempo depois, Mons. Lima induziu, e até forçou, que Murilo o comprasse este imóvel, condicionando a aquisição à sua remuneração como professor da Escola Normal Rural. E assim aconteceu. Por vários anos, Pe. Murilo aplicava seu único salário na formação deste seu patrimônio que, segundo Mons. Lima, seria a sua sustentação, no futuro. O imóvel ficou sendo alugado, até que, já nos anos 70, o imóvel passou a ser a sede e residência da comunidade das irmãs, cônegas de Santo Agostinho, como ainda hoje. Um fato pitoresco é que parte do quintal desta casa foi cedido a Assunção para crescer sua casa. Mas, isto nunca foi para o papel. Terão os herdeiros honrado este compromisso? Espero que sim.  


- Sua condição de diabético foi motivo para estorietas engraçadas com respeito aos cuidados com a alimentação. E era comum que alguém falasse: - Não, o Sr. não pode comer isto, não pode comer aquilo. Em determinadas circunstâncias, era como se vivesse uma ditadura de proteção por parte de alguns paroquianos. Às vezes, quando ia a uma renovação numa casa de família, tinha que amargar uma certa indiferença das pessoas da casa que não providenciavam qualquer coisa para um breve lanche do vigário. No que freqüentemente repetia: Ôxe, quem lhe disse isso?  E houve aquela cena em que recebeu em casa 3 jacas de um romeiro e pediu para guardá-las enquanto amadurecia. O cheio na casa era tentador. Poucos dias depois, percebeu que o cheiro sumiu. O pessoal de casa tinha comido as 3 jacas. Cadê? – Não, o Sr. não pode comer dessas coisas, não!

- São Pedro em Gallicantu, Jerusalém. É uma grande lembrança que guardo através de um pequeno tablete de madeira preso à porta da geladeira de casa, um encontro diário. Foi na romaria do Jubileu pela Terra Santa. Murilo sabia que eu e Mirian estávamos há 10 anos ausentes da eucaristia. A minha segunda união matrimonial o preocupava, embora tivéssemos o cuidado para evitar o que se poderia dizer, naquele grupo, o escândalo. Então nos resguardávamos, pois lamentavelmente havia algumas pessoas que nos discriminavam, e até rotulavam inconvenientemente. Mas, naquele dia ele nos chamou e propôs: vocês não querem se confessar? Foram duas longas, e maravilhosas, conversas. Naquela tarde Pe. Murilo celebrou, ali, no mesmo local onde Pedro negara 3 vezes, antes que o galo cantasse. Fomos à mesa eucarística e dela nunca mais nos afastamos. 

- No lançamento do III Simpósio Internacional, na sede do governo estadual, eu conversava com uma pessoa que me dizia: “- Em três ocasiões fomos à casa paroquial convencer Pe. Murilo a ir para a política (uma vez, com o ex-governador Virgílio Távora). Para a eleição municipal em Juazeiro, para vice ao governo, para uma vaga senatorial. Saímos de lá, todas as vezes, com um não amarelo, daquela cara ingênua e quase santa. Nunca conseguimos seduzir Pe. Murilo a este propósito. Hoje eu penso que bobagem teríamos feito, se tivéssemos desviado a rota desta criatura, cuja vocação se revelou perante as massas de nordestinos que só encontram a razão do viver no Juazeiro, aos pés de Nossa Senhora das Dores e do Pe. Cícero.” Nessa hora, ele chega perto de nós e pergunta: - Do que é que vocês estão falando? Não soube. Já o chamavam para compor a mesa dos trabalhos.

- Pela ajuda financeira que a Prefeitura de Juazeiro deu para que realizássemos a II Exposição Fotográfica do Juazeiro Antigo, durante a administração de Orlando Bezerra, nos comprometemos a ceder o acervo (200 fotos) para uso da municipalidade. Lembrando a frustração que fora a perda total, por falta de conservação do acervo inicial da I Expo (200 fotos), Pe. Murilo nos recomendou que deixássemos tudo na guarda da casa paroquial, até que houvesse condições para esta entrega, de preferência para uma exposição permanente, em algum ponto designado pela PMJN. E assim ficou, durante vários anos. Somente quando estava para ser inaugurado o Memorial Padre Cícero, já na administração de Salviano, as fotos foram entregues e ainda hoje estão lá. Milhões de romeiros e turistas já viram aquelas fotos e é como nos sentimos realizados pelo que Pe. Murilo nos permitiu fazer.

- Meu pai foi um dos que levaram à frente a idéia de captar as imagens da TV Jornal do Commércio, de Recife. Os testes preliminares foram feitos em Caririaçu, para onde o grupo levava os equipamentos. O local mais indicado era o ponto mais alto dentro da cidade, no caso a torre da Matriz de São Pedro. Pelas improvisações, era necessário fincar a grande antena no topo da torre. Para tanto, o telhado da igreja sofreu muito com essa turma caminhando em cima. O resultado foi um sucesso, pois a imagem apareceu com perfeição no pequeno aparelho, com alegria geral dos populares, apesar da muitas telhas quebradas. Pe. Murilo soube da aventura e alguns dias depois nos visitou no Centro Elétrico. E da porta já foi dizendo: - Luiz, o Pe Feitosa mandou dizer que se vocês voltarem a Caririaçu para quebrar as telhas da igreja, ele bota vocês para correr a tiro de bacamarte.

- A Casa Paroquial nos permitiu conhecer muitas figuras da cena brasileira. Empresários, pesquisadores, jornalistas, religiosos. E políticos – principalmente estes. Vinham aos montes. A casa do Murilo era a parada obrigatória nas datas marcantes das romarias. Mas, freqüentemente, eles não vinham espontaneamente. Eram seus romeiros, os das bases políticas nos seus estados, especialmente de Pernambuco e Alagoas, quem os traziam até ali, e ao altar de nossa Mãe das Dores. Contudo, aos olhos do vigário era esta gente simples o objeto de atenção mais cuidadosa. Sobretudo porque, através deles, suas homilias se faziam de recados indignados para que, como ele, fossem mais incondicionalmente defensores desta gente sofrida dos sertões. Na sua sala de visita era o que percebíamos, o abraço mais afetuoso, a palavra mais delicada e carinhosa. Foi assim, toda a vida, sem mudar em nada.

- Tarde costumeira do sábado. Daniel e Pe. Murilo conversavam na sala da casa paroquial. Toca a campainha e Alzirinha vai atender. Os dois são surpreendidos com a chegada de um jovem que, dirigindo-se ao Murilo, logo lhe diz: - “Recebeste a minha carta?” A pergunta e os trejeitos do camarada tiraram os dois do sério. Fez-se um silêncio e Murilo arrematou: - “Carta, não, eu não recebi nenhuma carta. Que carta?” O cara esclareceu: - “Uma carta em que eu te pedia para vir morar contigo”. Aí não deu mais para segurar o acesso de riso. Murilo ainda sério, tentou: - “Não, não recebi nenhuma carta. E além do mais, meu camarada, não dá para você morar por aqui. Aqui já tem gente demais”. O sujeito desconversou e foi embora. Por muito tempo, quando chegávamos à casa paroquial, já íamos indagando: - Recebeste a minha carta? Pe. Murilo não se agüentava de tanto rir.

- Minha irmã, Ana Célia, lembra sempre com carinho as oportunidades em que conduziu em seu carro o Mons. Murilo para atos religiosos em residências de paroquianos, sobretudo nas celebrações da renovação da entronização da imagem do Coração de Jesus, ou em reuniões do ECC. Depois dos eventos lá vinham eles de volta à casa paroquial. O veículo não era lá muito confortável. Nem ar condicionado tinha. As vias, com calçamento e asfalto quase sempre esburacados e a motorista, apesar de esforçada, sem muita habilidade, tinha que por o carro por cima de pau e pedra, dando grandes solavancos que o intranqüilizava. Com estas manobras o coitado do passageiro sofria alguns sobressaltos. Muito crítico, mas sempre bem humorado, ele costumava dizer: - Ô Celinha, tu diriges tão bem!

- Pe. Murilo tinha sempre presente uma preocupação em oferecer uma assistência social e médica aos romeiros. Foi o caso do seu estímulo e apoio ao projeto “Romeiros da Ciência”. José Carlos dos Santos, pró-reitor da URCA nos diz: “A idéia desse projeto nasceu do Monsenhor Murilo de Sá Barreto, que sempre se preocupou com as romarias de uma forma mais ampla e instigou a universidade a se voltar para as questões sociais. O projeto contabiliza mais de 30 mil atendimentos envolvendo 120 alunos em seus cinco anos de existência, nas principais romarias. Alunos dos cursos de Enfermagem e Biologia da Urca acabam trocando a sala de aula pela prática e, fazem a aferição da pressão arterial, tipagem sanguínea e distribuem folders educativos com conteúdo voltado para endemias freqüentes como hanseníase, tuberculose, diarréia e outras.

- Nos anos em que tivemos grande aproximação ao Pe. Murilo, ele nos fazia participar do relacionamento com sua família, que como sabemos, é muito numerosa. Com alguma freqüência íamos à casa de suas irmãs e era, particularmente, uma grande alegria. Um dia nos contou que tinha uma prima, em Barbalha, por quem tinha muito afeto. Vez por outra ele a recebia na casa paroquial para uma conversa e conselhos. Depois ela desaparecia e não se viam mais, por um bom tempo. Num desses retornos ela lhe falou que havia se convertido a um credo evangélico, estava muito feliz, sua vida havia mudado muito, pois tinha encontrado Jesus. Continuaram conversando e, na saída, ironicamente, Pe. Murilo lhe diz: - “Minha prima, se você de fato encontrou Jesus, faça como eu faria, não largue. Se agarre bem com ele e não largue nunca mais”.

Temporada de romaria, igreja matriz cheia para a missa dominical. Um romeiro passa pela sacristia e lhe diz: - “Pe. Murilo, eu me lembrei e trouxe um presente que o senhor vai gostar”. Tira de uma sacola um desses bonés bem conhecidos do Vasco da Gama e presenteia o vigário que lhe agradece. Murilo dobra o boné, põe no bolso e vai para o altar celebrar. Durante a missa, à sua frente, uma romeira o perturbou bastante porque ela usava um boné do Flamengo, e não tirava da cabeça. No fim da missa ele está cumprimentando os romeiros quando lhe aparece a dita romeira, torcedora do Fla, ainda usando o boné. Ele não se contém e diz: - “Minha senhora, tire este boné da cabeça” (e ele mesmo o tira). Mete a mão no bolso, puxa o boné do Vasco que ganhara há pouco, e lhe diz: - “Use este, que foi bento pelo Pe. Cícero”. Põe o boné na cabeça da romeira e sai rindo da brincadeira.

- Maílson, dedicado e muito esforçado administrador do cemitério do Socorro, sempre foi reconhecido por Mons. Murilo como tal. Ele o incentivava muito, principalmente porque Maílson tinha a sua ligação mais próxima da paróquia por ser da Irmandade do Santíssimo Sacramento. Um dia levaram ao conhecimento de Pe. Murilo que nos planos de Maílson, para conter a onda de roubos e vandalismo aos túmulos do campo santo, estavam a instalação de uma cerca elétrica no muro do cemitério, a montagem de câmeras de TV e ele até estava pensando se cobraria uma taxa de manutenção das famílias, proprietárias de jazigos. Depois de ouvir toda aquela estória Mons. Murilo se saiu com esta: - “É, do jeito que as coisas vão indo, além de dar choque nas coitadas das almas, Maílson vai terminar cobrando IPTU dos finados.”

- Muitos romeiros, roceiros em suas origens, vinham ao Santuário trazendo fotografias de vacas acometidos de enfermidades e que, graças alcançadas, tinham se curado. Eles entregavam estas fotos para registrar suas promessas de vir agradecer aos pés do altar de Nossa Senhora das Dores. Pe. Murilo tomava estas fotos e no verso fazia uma dedicatória para Manoel dos Anjos, para que ele guardasse com carinho aquela sua vaquinha. A turma que assistia a isto começou a fazer troça com Manoel dos Anjos. E até Pe. Murilo perguntava: - “Manoel, como vão minhas vaquinhas?”  Ele, no começo, ficava chateado, mas depois já foi se saindo, dizendo que do leite das vaquinhas já estava até fazendo queijo. Um dia ele convenceu Geraldo Alves a procurar Manoel dos Anjos, em busca de um destes queijos. E não é que o Geraldo acreditou e foi procurar o tal do queijo.

- Uma parte dos romeiros que vêm a Juazeiro em Setembro segue para Canindé, em visita à Basílica franciscana.  Numa destas ocasiões um romeiro veio conversar com o vigário para lhe pedir um conselho. Ele havia prometido a São Francisco que iria a Canindé para terminar de pagar a sua promessa, pois o seu garrote de estimação se curara. A promessa era, então, ir rezar em Canindé, onde deixaria o garrote. Mas, lhe aconteceu alguma coisa e não seria mais possível ir até lá, voltando a Alagoas. Ele queria saber se a promessa seria válida se ele deixasse o garrote em Juazeiro. Murilo se entusiasmou todo pra receber este garrote. Mas, quando viu que o tal garrote era uma estátua de gesso, a decepção foi grande. “– Meu senhor, o garrote é este aí ? Não, assim não dá certo não, o senhor vai ter, mesmo, que ir para Canindé, deixar este garrote por lá.”

- Quem me conta é Armando Lopes Rafael: “Num dos seus sermões, Mons. Murilo explicava aos fiéis as diferentes cores das estolas usadas na celebração da Santa Missa. E dizia,  naquela sua entonação pedagógica,  que a cor da estola acompanha a época em que se vive o respectivo tempo litúrgico. E, explicava: “A branca (cor da alegria) é usada nos grandes dias de festa da Igreja: Imaculada Conceição, Natal, Ano Novo, etc.”. A roxa (cor da  penitência) é usada no tempo do Advento (que antecede ao nascimento de Jesus) e nas missas pelos mortos. A vermelha (cor do fogo, do Espírito Santo) é usada nos dias em que se comemora um santo-mártir (São Pedro, São Paulo, etc). Já a estola verde (cor da esperança) é usada no tempo comum, o mais longo dos tempos litúrgicos. Portanto, quando vocês me virem chegar de estola verde, não vão dizer por aí que é porque o Pe. Murilo torce pelo Icasa.”

- Eu publiquei o meu primeiro livrinho sobre Juazeiro, em 1997, motivado pelo estímulo que recebi de Pe. Murilo. E ele esteve presente desde o momento em que escolhi o título de uma série de artigos que ia publicando no jornal Folha da Manhã, de Demontier Fernandes. Na abertura do livro eu escrevi: “Uma vez ouvi, e nunca mais esqueci, a expressão franca, quase ingênua, mas muito verdadeira, de que “Juazeiro é um mundo”. Ela foi dita pelo meu querido vigário, Pe. Murilo de Sá Barreto, do alto de sua autoridade de permanente observador de tudo aquilo que importa ao pastoreio de sua gente.” Quando o livro me foi entregue pela gráfica, eu me apressei em lhe mandar um exemplar. Quando fizemos o lançamento, na Câmara Municipal, lá estava ele, confirmando esta estima pessoal que tem me gratificado por todos os dias de minha vida.

- Quando lhe falávamos da sua vida dedicada, e o tratávamos como o padre-romeiro, o vigário do Nordeste e outras designações carinhosas que perpetuaram a sua ação pastoral no Juazeiro, às vezes ele nos lembrava de que sua formação sacerdotal tinha sido na direção contrária ao que seria seu destino. E mencionava a insistente campanha orquestrada nos seminários de Crato e da Prainha, onde tudo conspirava contra os interesses de Juazeiro, antro de fanáticos. Ele mesmo, depois de tantos anos de vida, inteiramente voltados para o cuidado espiritual do homem sertanejo, nordestino, esses romeiros anônimos que ainda hoje enchem o Santuário Diocesano da Nossa Senhora das Dores, era generoso ao afirmar: “Eu entrei no Juazeiro e o Juazeiro entrou em mim. E nunca mais, nem eu saí do Juazeiro, nem o Juazeiro saiu de mim.” 

- Novamente as frases. Procuro relembrar suas expressões mais simples e profundamente identificadas com o seu entendimento sobre o Juazeiro. Quando discutíamos a realização das Exposições Fotográficas do Juazeiro Antigo, entre os anos 67-70, levávamos para as mesas dos cafés sabadinos algumas reflexões sobre a evolução histórica e urbana da cidade. A generosidade de muitos colaboradores nos enchia as mãos com tantas fotos e por elas muita conversa rolava. Tirávamos destas conversas grandes ensinamentos. Foi num destes que ele sentenciou: “Juazeiro é uma terra de muita História e pouca Geografia”. A frase, reproduzida a seu tempo, no material das Exposições, ficou como um dístico daquela cruzada em que eles nos orientava de como se defendia o patrimônio histórico e cultural da terra do Pe. Cícero, coisa que Daniel Walker e eu nunca mais esqueceríamos. 

- Por ocasião de uma missa de corpo presente, na capela do Socorro, familiares e amigos do falecido entraram na igreja com muitas flores, coroas e arranjos. Bem à frente do grupo estava Dalva Mendonça que sem nada nas mãos assistia a tudo aquilo. Observando impaciente aquela movimentação, Pe. Murilo percebeu que a desorganização estava retardando o início da missa. Tomando o microfone da capela procurou orientar os presentes: “ - Olhe, por obséquio, vamos organizar isso, para iniciarmos a santa missa”. Por favor, as “coroas”, passem aqui para o lado esquerdo. Nesse momento, por algum motivo, Dalva Mendonça, sai do seu canto e vai para o lado esquerdo. Murilo não perde a piada, e diz ao microfone: - Dalva, quando eu falei  “as coroas”, eu quis dizer “as flores”, Dalva.

- “Monsenhor Murilo de Sá Barreto, durante quarenta anos, foi o grande vigário de Juazeiro do Norte, terra do padre Cícero; foi o guardião da memória, da vida e da obra de padre Cícero, além de ser o responsável pela romaria que anualmente acontece na região, composta por romeiros oriundos do interior do Nordeste, que até hoje homenageiam, com saudade, a vida e a obra de padre Cícero. O próprio monsenhor Murilo tornou-se fonte de admiração e respeito de todos os romeiros que, todos os anos, vão a Juazeiro do Norte.” Uma homenagem a Mons. Murilo está inserida no relatório de Atividades Parlamentares (2003-2006) do Sen. Tasso Jereissati (PSDB-CE), remetida como publicação aos correligionários e ao público interessado, em geral. E ali se pode ler parte do seu discurso no Senado (06.12.2005), pouco após a morte do seu amigo.

- Expedito Costa já fazia negócios comerciais em Juazeiro, mas ainda não tinha muita afinidade com Pe. Murilo e decidira construir, em frente à casa paroquial, um cinema e um restaurante. Seu Lucas Bezerra, residente em frente, levou a questão ao vigário, temendo que pela vizinhança a questão fosse preocupante, da falta de sossego que a empreitada determinaria. Murilo foi a Expedito e procurou demovê-lo da pretensão. “ – Expedito, faça isso não! Faça um hotel aí, você vai se dar muito melhor”. Aqui só tem é muito rancho, e é preciso melhorar a qualidade da hospedagem que se oferece ao romeiro. Expedito expôs a questão a seus irmãos, na Paraíba, o que disseram: “Home, faça como o Pe. manda. Vai daí que se a coisa não der certo, nós vamos ficar pensando que isso foi praga do padre do Juazeiro.”

- Pe. Murilo tinha muito zelo com sua atividade de magistério. Era uma grande vocação. Suas aulas tinham muito de participação dos alunos. E falavam com orgulho do privilégio que era tê-lo como professor, pois ele dominava o conteúdo e tinha uma empatia fora do comum. Mesmo quando falava de sua aposentadoria, dizia que ainda ficaria lecionando na Escola Normal, por mais algum tempo. Um dia soubemos que ele tinha mudado de idéia. Ao se aposentar se afastaria definitivamente. Com o tempo ele foi percebendo o desinteresse do alunado para com sua matéria. Até que alguém, em sala de aula lhe indagou: “- Pe. Murilo, me diga, Eça de Queiroz é irmão de Rachel de Queiroz?” E concluía: “Eu não agüento mais um negócio desse. Quando me aposentar, acabou:  Não dou mais nenhuma aula.” 

- Trecho da Ata da reunião da Irmandade do SS. Sacramento da Paróquia de N. Sra. das Dores, em 20.11.2005: “...Mons. Murilo pediu que os irmãos coloquem em dia as suas responsabilidades financeiras, para o bom andamento dos compromissos da Irmandade. Mons. Murilo disse que Pe. Cícero em 1871 celebrou a primeira missa, e em 1874 iniciou a reforma da igreja matriz e com muito amor incrementou a devoção a Jesus Sacramentado através da Irmandade do SS. Sacramento e do Apostolado da Oração que se tornaram forças vivas para a Paróquia em todas as suas realizações. Disse que os movimentos paroquiais devem ser fonte de encontro com o eterno e fonte de caridade e que ninguém pode crescer na santidade sem caridade.”

- Trecho da Ata da reunião da Irmandade do SS. Sacramento da Paróquia de N. Sra. das Dores, em 20.11.2005: “Em dado momento, Mons. Murilo, com ar de um rosto abatido, um olhar penoso, disse que já tinha pedido afastamento da Paróquia ao Sr. Bispo Diocesano (...) por causa das suas péssimas condições de saúde. Que já há alguns anos que sofria de diabetes, hipertensão e outras enfermidades, as quais sofria em silêncio, mas que agora por recomendação médica ele devia ir a Fortaleza fazer uma biópsia do fígado. Estava confiante na recuperação se fosse necessário uma cirurgia, pois todos os dias rezava 3 Salve Rainha em louvor a Nossa Mãe das Dores pela sua saúde, recomendando-se  às nossas orações e a dos devotos de N.Sra. das Dores, de quem foi devoto filial e ardoroso.” 

- Trecho da Ata da reunião da Irmandade do SS. Sacramento da Paróquia de N. Sra. das Dores, em 20.11.2005: “Disse ainda do seu espanto, susto que teve no altar quando o sujeito quis fazer-lhe mal, a partir daquele dia não teve mais saúde, confessou-nos Mons. Murilo. Disse-nos ainda, com ar de tristeza, existem barracas que negociam prostituição, assaltos, drogas, etc, profanando o Santíssimo na época da romaria. Os que deviam saber, sabem, mas não resolvem o problema. Para alguns, mais vale os votos, mesmo dos maus.” (...) Mons. Murilo precisou deixar a reunião, saiu com lágrimas nos olhos, e todos de mãos dadas rezaram o Pai Nosso e Ave Maria a N. Sra. das Dores pela sua saúde. (Ata lavrada por Carlos Alberto de Oliveira, em 04.12.2005, e aprovada em 15.01.2006.)

- Manias, cuidados e gostos, quem não os tem? Também o vigário se notava por estes detalhes. Por exemplo: Durante os atos religiosos, especialmente nas celebrações das missas ordinárias, os auxiliares que o atendiam relatam a sua preferência por uma colherinha minúscula para a adição da água ao vinho (por sinal, muito pouco, também) durante a preparação das espécies. Era um gesto delicado, nos mínimos detalhes. Aliás, durante as celebrações ele temperava a garganta com água e somente de uma quartinha, nunca gelada, pois lhe fazia muito mal. A decisão de instalar os ventiladores em cima do altar principal deve ter sido sua, contudo ele detestava celebrar com eles ligados. No início da celebração, um simples olhar já chamava a atenção dos auxiliares que lá corriam e desligavam.

- O ECC da Paróquia de N.S. das Dores me convidou, e aceitei gratificado, para fazer a saudação a Pe. Murilo na celebração dos seus 40 anos de serviço devotado à Paróquia-Matriz. Foi um “passeio” maravilhoso ler e reler sobre sua vida, nos dias que antecederam à festa, sentado à frente de um computador, enquanto ia fazendo apontamentos e o longo discurso que terminou virando opúsculo, junto com outro texto de Daniel Walker. Lá pelas tantas me meti a fazer considerações sobre o modo estranho com que a Diocese de Crato, e o Bispo D. Newton estava presente, negara a concessão do título de Monsenhor. Os reclamos, não somente meus, mas de toda a comunidade, somente foram atendidos quando o novo Bispo, D. Fernando Panico, encaminhou a solicitação a Roma, através de uma lista que continha outras ilustradas figuras do clero caririense.  

- A atenção aos romeiros era das marcas mais características do Pe. Murilo. Das solicitações mais freqüentes que os romeiros faziam ao vigário do Nordeste, uma era a bênção a objetos religiosos que eles adquiriam em Juazeiro para levar para suas casas ou presentear amigos e parentes. Ele preferia fazê-lo durante um ato religioso, direto do altar da Mãe das Dores, mas não se recusava fazê-lo pessoalmente. Numa destas ocasiões vem um romeiro das Alagoas e lhe pede: Padre Murilo, benza aqui “os meus troços”. Murilo achou esquisito aquilo e lhe diz: “- Abra aí, meu romeiro, para eu ver o que é”. O romeiro rasga a embalagem e dali se vê uma enorme fotografia da dupla sertaneja, Zezé de Camargo e Luciano. Desconversando com o romeiro, Murilo lhe diz: Esses dois “santinhos”, aí, eu ainda não estou benzendo.”

- Quem conhecia as paredes das salas da casa paroquial poderia ali ter identificado umas fotografias muito bonitas, tanto da estátua, como do Juazeiro, em tempos de romaria. Havia também algumas delas no quarto do vigário. Eram do fotógrafo Sergio Bade, um camarada que conquistou a simpatia de Mons. Murilo. Por questões que não vale a pena aqui considerar, Sérgio foi preso e passou alguns meses na Penitenciária local. Gorete Couto me contou que freqüentemente o visitava e o apoiava na superação das dificuldades. Constituído advogado iniciou-se a batalha para livrá-lo da prisão. Um dos recursos foi uma declaração de boa conduta que Mons. Murilo assinou, dando o seu depoimento, para ser ajuntada ao processo, exatamente após a Missa das 6 na segunda-feira antes de viajar para a operação em Fortaleza. Sérgio foi solto depois da morte do Pe. Murilo.

- Dia 31.05.1996: a tentativa de assalto da Casa Paroquial, e os Padres Murilo e Luiz Parente. Dois assaltantes entraram e, armados, queriam o dinheiro do pagamento dos operários da construção. O Pe. Parente foi logo dizendo: - Eu só tenho dois reais. O auxiliar Marcílio foi amarrado com fios da Tv. Uma garota fugiu pelos fundos e avisou a polícia. Os molhos de chaves e um automóvel Brasília na garagem atrapalharam o desenvolver da ação. Os assaltantes bateram em fuga, pela rua. A casa se encheu de amigos, polícia e médicos. Todos preocupados com a aflição que Murilo vivera. Sentado num sofá, Pe. Luiz Parente estava em estado de choque. Pe. Murilo, sentindo que as atenções dos médicos eram para com sua saúde, foi logo tranqüilizando: - Eu estou bem, não se preocupem. Mas, pelo amor de Deus, atendam aquele pobre coitado que está tremendo ali naquele sofá.

- Pe. Murilo gostava muito de animais. Em sua casa havia pássaros, aves, gatos, papagaio, macaco. E isso tudo era uma festa, bastava que ele chegasse junto deles ou falasse um pouco mais alto para que eles o percebessem. E eram presentes que as pessoas freqüentemente lhe levavam. Simone e Cícero eram um casal de muita participação nas atividades da Paróquia, especialmente na Pastoral do Dízimo. Um dia, Dona Elias, mãe de Simone, ganhou duas cadelinhas de presente e uma delas a Simone deu a Mons. Murilo. Algum tempo depois, Murilo pergunta a Simone como ia a cadelinha que tinha ficado com a família, se ela já tinha alguma cria. Ao que Simone lhe diz: Não, Pe. Nenhuma. A minha cadelinha ainda é virgem. Virgem? indaga surpreso o Pe. Murilo. Pois a daqui já deu duas crias. Eu acho que vocês ficaram com a santinha e me deram a transviada.

- Na calçada da Casa Paroquial, Pe. Murilo e um amigo estavam assistindo à passagem de vários caminhões de romeiros, em despedida, no fim de mais uma romaria. Neles, os romeiros iam cantando: “Ó que estrada tão longa, tão cheia de pedra e areia. Valei-me meu Padrinho Cícero e a mãe de Deus das Candeias”. E continuavam com outros versos aparentemente desconhecidos. Quem não conhece estes versos? Eles acompanham os romeiros desde muito tempo. Quem estava ali, ao lado de Mons. Murilo, estranhou que houvesse no cântico, pelas vozes dos romeiros, versos aparentemente novos, uma nova letra. E indagou: Mons., é isso mesmo, eles não estão inventando, cantando da cabeça deles?  Bem humorado, Pe. Murilo lhe satisfez a curiosidade: É assim mesmo, eles vão cantando como quem está recitando os Lusíadas: a gente sabe como começa, mas não sabe como termina.

- Ninguém no Juazeiro desconhece dois fatos que se ligam à vida de Daniel Walker Almeida Marques. Quando se tornou visível, pelas suas funções de executivo, jornalista, pesquisador, professor e cidadão, foi sempre com um caráter exemplar de conduta ética e moral, a par de sua competência técnica. De outro lado, a sua longa e dedicada amizade a Pe. Murilo fê-lo credor de uma interlocução, para a qual só se podia observar uma certa reciprocidade. Assim, em muitas situações, as pessoas quando desejavam sua participação e colaboração, por vezes iam diretamente a Pe. Murilo para obter aquela certeza. Somente num caso a questão era diferente: a intolerância de Daniel para com a política partidária. Sondado algumas vezes sobre isto, Pe. Murilo era definitivo: - Ele já me nomeou seu procurador para esses assuntos. Mas se ele já lhe disse não, eu não posso reformar a palavra dele.

- Todo mundo em Juazeiro do Norte sabe o quanto Pe. Murilo era um torcedor vibrante do seu Clube de Regatas Vasco da Gama. Tornou-se uma grande identidade e uma simpatia a que muitos concorriam. Lembro que nos noticiários esportivos das emissoras locais, os locutores e repórteres sempre faziam um comentário com respeito à situação do Vasco no campeonato corrente e mencionava a aflição ou a alegria do vigário. E o próprio Murilo se divertia com isto, pois era dos seus assuntos prediletos, em roda descontraída. Evidente que muita coisa era invencionice dos que desejavam lhe atribuir esta fama de torcedor, daí os exageros falados. E houve até quem jurasse que, na celebração de uma missa, durante uma má fase do time, o vigário tinha dito, alto e em bom som, ao invés da invocação verdadeira: O Senhor esteja convosco... o cabuloso “O Senhor esteja com o Vasco”.

- Não existiu uma pessoa no Juazeiro do Norte que teve a sua existência tão documentada fotograficamente. Nem mesmo as figuras mais populistas, ou até mesmo o nosso patriarca Padre Cícero Romão Batista. Jamais ouvi dele qualquer menção de que isto lhe incomodasse. Não fazia pose. Quem quer que viesse fotografá-lo, e não foram poucos, encontrava uma pessoa desarmada de qualquer escrúpulo. Era na simplicidade de sua vida, sem gestos preconcebidos. Só pude constatar isto depois da sua morte, quando tivemos uma enxurrada de fotografias mostradas por tantos amigos (Ione Rocha, Pautília Ferraz, Roberto Bulhões, Daniel Walker, Gorete Couto, Demontier Tenório e outros). Destas, duas merecem a minha predileção (uma feita por Celso Oliveira, em seu gabinete de trabalho e outra feita por Ione Rocha, andando descontraidamente num parque em Bordeaux, França).

- Ouvi de Mons. Murilo, algumas vezes, o lamento de como o frade capuchinho, frei Damião de Bozzano, era objeto fácil de políticos inescrupulosos, em busca de espaço para suas ações pelo interior sofrido do Nordeste. Mas, a sua opinião era clara, como está expressa no livro do médico pernambucano, Blanchard Santos Torres, (Frei Damião, o santo e o médico, 2004): “Frei Damião sacrificou a sua saúde e sua vida pela causa do Evangelho. Era um catequista zeloso e exemplar. Na hora de sua morte, durante a missa na Matriz de Nossa Senhora das Dores, todos pararam, ajoelharam, rezaram e choraram pelo frade capuchinho. Frei Damião era um fenômeno sob todos os aspectos. Sem frei Damião cria-se um espaço, um vazio que a Igreja há de suprir e continuar sua caminhada ao lado do povo.”

- Uma homenagem a Mons. Murilo está inserida no relatório de Atividades Parlamentares (2003-2006) do Sen. Tasso Jereissati (PSDB-CE), remetida como publicação aos correligionários e ao público interessado, em geral. E ali se pode ler parte do seu discurso no Senado (06.12.2005), pouco após a morte do seu amigo: “Monsenhor Murilo de Sá Barreto, durante quarenta anos, foi o grande vigário de Juazeiro do Norte, terra do padre Cícero; foi o guardião da memória, da vida e da obra de padre Cícero, além de ser o responsável pela romaria que anualmente acontece na região, composta por romeiros oriundos do interior do Nordeste, que até hoje homenageiam, com saudade, a vida e a obra de padre Cícero. O próprio monsenhor Murilo tornou-se fonte de admiração e respeito de todos os romeiros que, todos os anos, vão a Juazeiro do Norte.”

- Final de Romaria. Agora também na despedida, repetindo a chegada festiva dos dias anteriores, milhares de romeiros faziam espocar fogos no adro da igreja. A cidade silenciosa na madrugada, de repente ficou barulhenta aos estouros que eram sentidos com muita força. Estavam saindo, de volta às suas casas, no interior dos caminhões, ônibus e outros transportes. Dentro da Casa Paroquial, o vigário Pe. Murilo, estafado da maratona que enfrentara, procurava conciliar o sono, repousando em seu quarto. Mas, os fogos o despertavam em meio àquela madrugada. Levanta-se e vai até à janela para ver o que estava acontecendo. Alguém que vai passando o encontra meio sonolento e já lhe pergunta: - Pe. Murilo, o Sr. já está acordado, a esta hora ?  Foi tanto romeiro nestes dias e o Sr. ainda quer saber deles ? E ele, esfregando os olhos: - “Ô meu Deus, nem dormir eles me deixam mais...”

- Quando o fato foi se agravando, e já não era apenas o prefeito, juiz, promotor, presidente da câmara, delegado, mas outros grupos políticos municipais, estaduais e até federais, com nítida filiação partidária, faziam figuração no cortejo da Procissão de Nossa Senhora das Dores, no encerramento da Romaria de Setembro, muitos paroquianos vieram interpelar o vigário para que ele desse um basta a aquele abuso, que nada tinha com a religiosidade do povo, e especialmente do romeiro.  A todos eles, Pe. Murilo costumava dizer que por seus princípios de respeito e civilidade, especialmente aos direitos de ir e vir, ele lembrava que Nossa Mãe das Dores era mãe de todos nós, conseqüentemente era mãe deles também. Daí por diante, nada mais lhe foi perguntado, embora muitos ainda tenham verdadeira antipatia por esta apropriação do sagrado, em atitudes tão profanas.

- No dia 2 de julho de 2009 estivemos reunidos, aqui em Fortaleza, os amigos de Monsenhor Francisco Murilo “Correia” de Sá Barreto para a apresentação da coletânea de alguns dos seus sermões, num volume organizado por Inês Tânia Callou de Sá Barreto Sampaio, Libânia Callou de Sá Barreto Sampaio e Maria Déborah Callou de Figueiredo, sob o título de Homilias dos Dias Simples. O evento se deu no Centro Cultural Oboé, na Rua Maria Tomásia, Aldeota, organizado entre a família barbalhense, a União dos Filhos e Amigos de Barbalha, a Associação dos Filhos e Afilhados de Juazeiro do Norte e a colônia caririense aqui radicada. Libânia compareceu muito elegante e chamando a atenção. Foi aí que Déborah lembrou a expressão mais doméstica e bem humorada de Mons. Murilo, aplicada a estas situações: “Libânia, tu estás a pintura mais feia do mundo.”

- Quando saudei Pe. Murilo pelos seus 40 anos de sacerdócio, na noite de 15.12.1997, em grande celebração do ECC no Círculo Operário, com um discurso enorme que encheu a paciência de muita gente, registrei a minha insatisfação de que seu trabalho ainda não tivesse o reconhecimento que esperávamos, pois, dentre outras coisas, o vigário da Mãe das Dores por tantos anos era um simples padre, perante a hierarquia. Julguei que se fazia necessário torná-lo Monsenhor, o que só foi efetivado por iniciativa do Bispo D. Fernando Panico, anos depois. Mas, muitos tinham o costume, e assim se mantiveram tratando-o, simplesmente, de Pe. Murilo. Dos que tinham dúvida, como tratá-lo, lembro de Teca Boaventura, sua ex-aluna, que ao indagar como seria daí por diante, ouviu do vigário a expressão bem humorada; - Teca, continue me chamando de padre. É mais baratinho, é só R$1,99.

- Uma das solicitações mais comuns dos paroquianos era sempre a celebração de missas, fossem em ação de graças ou pelo falecimento de algum parente. Certo dia lhe aparece uma paroquiana da sua estima, à qual não poderia lhe faltar. Ela procurou Pe. Murilo para que ele rezasse a missa de sétimo dia do falecimento de sua mãe. Ainda muito abatida, ela queria, contudo, que ele também indicasse quem poderia cantar, fazer um pequeno coral durante o ofício. Para seu espanto, ficou ouvindo da amiga que ela insistia que o coral cantasse uma missa bem penosa e lamurienta. Mas, não se fez de rogado, e foi logo indicando: - Olhe, minha filha, não sei se você conhece estas pessoas que vou lhe indicar, posso até dizer os endereços delas. Chame Silvanir Soares, Balbina Garcia e Nair Chaves. Quando estas três cantam juntas, são capazes de fazer chorar até o defunto.

- Em Barbalha houve na Igreja Matriz de Santo Antonio uma missa comemorativa por algum fato, e o Pe. Murilo foi o celebrante. Ele convidou a Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Juazeiro do Norte a se fazer presente. E, de fato, para lá foi uma representação, talvez uma meia dúzia de irmãos. Foram barrados quando procuraram se localizar numa área lateral, privilegiada, reservada às autoridades. Eles insistiram, se dizendo convidados, e o organizador foi procurar o Pe. Murilo para ouvir-lhe uma solução. Murilo foi até lá e viu que entre os que já ocupavam o local reservado estavam proeminentes figuras barbalhenses das famílias tradicionais (Sampaio, Sá, Barreto, Callou, etc). E recomendou que ele acomodasse a turma de Juazeiro, dizendo: Ora, se você deixou sentar os “primos”, agora tem que deixar também os “irmãos”.

- De Armando Lopes Rafael, sobre uma conversa com Carlos Eduardo Esmeraldo, ex-engenheiro da Coelce: No dia 22.06.1988 o Vasco da Gama, o time do coração de Pe. Murilo, sagrou-se campeão carioca, vencendo o Flamengo. O personagem folclórico neste campeonato foi o lateral-direito do Vasco, Cocada. Durante a final do campeonato, onde o empate dava o título ao time de São Januário, Cocada entrou em campo aos 42 minutos do segundo tempo, quando estava 0x0. No minuto seguinte marcou o gol do título e, ao comemorá-lo, tirou a camisa, sendo expulso logo depois. No dia seguinte, aconteceu a Páscoa dos funcionários da Coelce, em Juazeiro do Norte, pelo celebrante Padre Murilo. Depois da tradicional benção final, ou seja, após o “ide em paz e o Senhor vos acompanhe” ele tascou essa: "Agora vocês vão para casa, comam uma cocadinha e bebam água."

- Numa das romarias a Santuários Europeus, sob a sua orientação, Pe. Murilo observava à distância as compras nervosas de várias pessoas num dos pontos mais buliçosos de Paris (Rue du Rivoli, ao lado do Louvre). De modo particular, minha mulher – Mírian, tinha dúvida e tendia a comprar um determinado perfume. Ao se virar, observou que o vigário estava atento a este negócio de sprays e cheiros das fragrâncias. Ela o consultou sobre o que achava, se era um bom perfume, e não era muito intenso, mas suave.  “Pode comprar, disse-lhe, rapidamente, este é muito bom e o perfume é muito agradável.” E, de fato, foi uma ótima aquisição. Sempre que ela usa lhe vem a lembrança, sempre saudosa, de sua pessoa que aquele tempo estava sempre atenta ao que ia acontecendo naquela romaria, e se divertia muito com todas estas coisas que iam acontecendo pelo caminho.

- Houve um tempo em que até a expressão mudou. A nomenclatura e a sinonímia em torno de uma pessoa efeminada Não é que isso nos interessasse tanto. Mas, a molecagem terminava por permitir estas brincadeiras. Aliás, com alguma reserva, tínhamos muito respeito e não usávamos certas palavras, temendo uma censura sua. Mas, veio o emprego mais comum da expressão “gay”. Várias vezes estávamos numa roda e especulávamos sobre o comportamento de alguma pessoa… Para provocá-lo, perguntávamos: - Pe. Murilo, o Sr. acha que  fulano de tal é gay ? Ele dava uma gargalhada e saia de fininho. Depois, sem que nem mais estivéssemos nos lembrando, e bem humorado ele vinha com uma frase que era muito reveladora do seu espírito crítico e brincalhão, e dizia: “Há indícios leves, porém convergentes.”

- Padre Luiz Parente, por sinal primo de Pe. Murilo, foi um eficiente colaborador de seu longo paroquiato, em que pese não ter sido muito longa a sua permanência na casa paroquial. Muito cedo ele ganhou a simpatia de muitos paroquianos e deles ganhava muitos presentes. Pe. Murilo, com boa simpatia, observava. Os presentes iam chegando, todos queriam agradá-lo, pois era um homem de grande dedicação e disposição, atendendo a todos, não só na Matriz, como na Capela do Socorro e por onde andasse. Até uma casa o Pe. Parente ganhou. Murilo dizia com aquele seu ar brincalhão: - Pe. Luiz já ganhou de bolo a automóvel. E ainda se trata de pobrezinho. Pobrezinho sou eu, que não tem nenhuma vaquinha. Pe. Luiz já tem prá mais de cinqüenta.

- Em 1998, estávamos, vários juazeirenses, conhecendo o Milagre Eucarístico de Lanciano. No Santuário há uma exposição sobre o reconhecimento científico do Milagre. Estava eu ali, químico de formação, completamente envolvido com aqueles resultados, quando pelas costas, uma mão no ombro me quebra aquela concentração com uma pergunta desconcertante: - Você acredita nisso tudo? Virei-me, surpreendeu-me a pergunta e lhe respondi: - Entre as razões teológicas referidas e estas evidências científicas apresentadas, não há como esconder a minha Fé. Eu creio, como creio que Nosso Senhor Jesus Cristo deixou os santuários da Europa e foi para o miserável lugar do Joaseiro, onde se operou uma nova maravilha. Pe. Murilo tomou meu braço e me disse: - Nunca esqueça o que lhe disse um dia, naquele sábado lá em casa, que no caso de Juazeiro, o sangue é o que menos importa.         

- Um dia, o jornalista e radialista Dario Maia Coimbra procurou o vigário para se aconselhar. Não era coisa rara, e neste dia Darim comentou com o Pe. Murilo que há algum tempo tinha contraído uma dívida de 20 mil reis com um cidadão, por um empréstimo que tomara, para uns investimentos no seu Centro Regional de Publicidade (CRP). Acontece que antes de quitar a dívida, a pessoa havia falecido, fazia poucos dias. Ele achava melhor pegar aquele dinheiro e mandar celebrar uma missa pelo repouso eterno do seu credor. Isto porque ao devolver o dinheiro para família, até poderiam pensar que a dívida era maior do que a que estava sendo saldada. Pe. Murilo foi direto: - Darim, com esse dinheiro você não vai poder mandar celebrar nem meia missa. - Nem mal celebrada? indaga o Darim. - Nem celebrada por mim, respondeu.

- Com nossa amizade, vez por outra eu era surpreendido com alguma atitude sua que me deixava verdadeiramente fascinado, por sua sensibilidade e grande generosidade. Na comemoração dos trinta anos de casamento de meus pais, em 08.12.1978, com missa que ele celebrou no altar de Nossa Senhora de Lourdes, eles estavam sentados à frente, muita gente da família e amigos nos bancos e eu em um local um tanto privilegiado, usando um genuflexório antigo. Terminada a missa ele veio nos cumprimentar e me perguntou baixinho: - você viu onde você se ajoelhou? E eu, um tanto disperso, não entendi, a princípio, o que queria me dizer. Então ele me disse: - esse era o genuflexório que o Padre Cícero usava quando vinha assistir missa aqui, nesse local... Comecei a chorar de emoção. Ele me abraçou e me disse ao ouvido: - Se entenda com a Nêga (Assunção), foi presepada dela...

- A Pia União das Filhas de Maria, da Paróquia de Nossa Senhora das Dores, foi fundada durante o vicariato de Mons. José Alves de Lima, em 17.05.1932. Sempre congregou os melhores quadros, jovens juazeirenses escolhidas a dedo, por minuciosa verificação das suas circunstâncias de família, trabalho, caráter e conduta moral. Bastaria ver a relação das suas integrantes para se ter uma idéia aproximada disso.  Certo dia, bem recentemente, na calçada da casa paroquial, uma delas vem reclamar ao vigário de umas coisas da paróquia e pergunta  o porquê da Pia União das Filhas de Maria estar se acabando. Sem arrumar argumento melhor, e falando sério, ele vai explicando que “ultimamente é muito difícil encontrar virgens imaculadas”. “Agora mesmo eu posso lhe dizer que só tem mesmo umas poucas: Assunção, Nair Chaves, Balbina Garcia, Quininha e Alzirinha, aqui de casa”. 

- E a propósito, Balbina Garcia, que era, afinal, uma destacada Filha de Maria, desde os anos 40, tinha fama de ser uma pessoa muito autêntica, às vezes irreverente e arrogante, bastava uma situação qualquer onde ela se sentisse ofendida. Numa noite, em cerimônia que acontecia na Matriz de Nossa Senhora das Dores, ela estava postada na entrada do altar-mor para ver de perto a passagem do Sr. bispo diocesano, D. Vicente de Paulo Araújo Matos, durante uma Visita Pastoral que fazia às paróquias de Juazeiro do Norte. Vendo que a passagem se estreitava, Pe. Murilo pediu a compreensão de Balbina para se afastar e desimpedir a passagem do cortejo. Bom, bastou. Balbina ficou uma fera e com o dedo em riste foi dizendo: - Olhe aqui, Pe. Murilo, quando você chegou aqui eu já estava. Murilo disse baixinho um “vôte”, e saiu devagarinho sem mais reclamar de Balbina.

- Às vezes apareciam umas pessoas que de tão ingênuas ensejavam algumas brincadeiras do vigário. Eram situações as mais engraçadas. Em dados momentos isto o colocava diante da rivalidade Crato-Juazeiro. Numa destas, uma romeira chegou junto e logo lhe interpelou: - Pe. Murilo, é pecado a gente ir no Crato ? - Claro que não, minha filha, respondeu prontamente. O Crato é a sede de nossa Diocese, é lá que o bispo D. Vicente reside, a terra do nosso santo Padre Cícero, uma cidade bonita para se visitar, etc, etc. - Então, padre, eu posso ir lá? Mas é claro, vá lá, faça o que você tem a fazer, mas não demore muito, não, viu? Noutra situação, Antonio Calábria, seu dedicado colaborador, passou pelo gabinete e já foi dizendo: - Padre eu estou indo no Crato. Ao que Murilo indagou: - Fazer o quê, Antonio? Sua “mãe” (referia-se à nossa Mãe das Dores) está é aqui mesmo.

- Tantos anos indo ao seu gabinete, eu via aquela imagem bonita na fotografia de dona Laudelina. Nunca falamos disso, de saudade, como tinha sido... Era reservadíssimo, silencioso. Recentemente, eu li um soneto que ele escreveu no início dos anos 50 e isto me disse tudo o que queria saber: Minha Mãe. Morta sublime! Oh! Minha santa morta.../ Há quanto tempo já que te pranteio / Que o teu carinho me não mais conforta / Nem mais me abrigas no teu casto seio! // Ah! Lembro-me ainda bem, segundo creio, / Pequenino, eu brincava ao pé da porta. / E, ao ver-te no caixão de flores cheio, / Mãe, nem sonhava que estivesses morta!...// Mas um dia passou, um mês, um ano, / E dois e três e mais e oh! desengano, / Nunca mais me beijou teu lábio amigo. // Não te vi nunca mais; e, na orfandade, / Clamo agora nas trevas com saudade / Mãe, por que foi que não morri contigo?

- Quando estudava no Seminário do Crato, ainda em 1950, próximo da sua ida para o Seminário da Prainha em Fortaleza, num pequeno caderno de anotações, encontrei a sua inquietação com a vocação sacerdotal que decidira abraçar. Para ele, os sinais evidentes da vocação sacerdotal estavam pautados por: 1). Pura intenção. No santuário só pela porta se entra e esta é Cristo. Ele mesmo nos disse: Eu sou a porta. Quem entrar por mim, será salvo; 2).Ciência requerida e dotes necessários para exercer funções sacerdotais; 3).Conduta irrepreensível de vida, piedade, exercício de virtudes e santidade. Francisco Murilo de Sá Barreto foi ordenado por D. Francisco de Assis Pires, em 15.12.1957. Muitos anos depois, confirmando o passo acertado que dera, ele escreveria: “Para mim, ser padre não significa ser um desencantado. Tenho alegria de minha vocação.”

- Pe. Murilo costumava lembrar que a sua formação sacerdotal incluiu uma prevenção contra Juazeiro, fruto do posicionamento dos Seminários em que estudara (Prainha e Crato). As romarias de Juazeiro, a este época, eram o motivo fundamental para este pé atrás e nelas só se via o fomento ao fanatismo religioso.  O seu lento e gradual esclarecimento, mais que isto, o seu entendimento sobre o fenômeno religioso do Juazeiro foi uma batalha que se travou por muitos anos, até à sua completa convicção e defesa. Quando os romeiros perceberam que a causa lhe conquistara, passaram a tratá-lo de o “vigário do Nordeste”. No livro de tombo da paróquia-matriz, somente lá pela página 100, em 15.09.1968, portanto, só depois de 10 anos entre nós, Pe. Murilo escreveu alguma coisa sobre aquela romaria durante a festa da padroeira.

- Havia em Juazeiro do Norte uma figura popular, Miguel rezador. Nós o conhecíamos bem porque ele trabalhou no escritório local de uma distribuidora de gás de cozinha. Depois foi acometido de distúrbios mentais e tornou-se um místico que perambulava pelas ruas e igreja. Era casado, tinha muitos filhos. Brincando, Murilo dizia: “Esse Miguel é perigoso, todo ano é um filho.” Dos seus filhos, uma era deficiente motora. Para ajudar a família, Pe. Murilo comprou uma casa, lá para os lados do Aeroporto, com algum dinheiro que retirou de sua poupança e aplicou generosamente no bem estar da família, fazendo a doação. Miguel morreu algum tempo depois do vigário. Antes disto Murilo amargou a notícia da violência que fizeram a Miguel, aplicando-lhe uma surra dentro da própria casa paroquial, enquanto o padre estava ausente, de viagem a Alagoas. Como ele sofreu com isto!

- Conselheiro sentimental. Não esqueço que por tantos anos seu gabinete tenha sido o local de portas abertas para receber paroquianos que levavam ao seu conhecimento as mais distintas questões sobre o relacionamento pessoal de namorados, noivos e casais em desajustes, em busca de aconselhamento. Por vezes vinham os pais em busca do esclarecimento e socorro para situações até muito embaraçosas. O clima era tenso, as pessoas chegavam sem aviso e havia choro. No mínimo, se tratava de já realizar um casamento. Não era o que ele aceitava e propunha como medida saneadora. Um dia, eu ia passando de um a outro compartimento da casa e ouvi a sua indagação que fazia à mãe aflita: - Quem é a maluca que vai se agarrar com esse maluco? Quanta gente ele harmonizou, em Cristo. Nada estranho para um missionário, professor de psicologia na velha Escola Normal.

- Recolho em algumas entrevistas de Pe. Murilo à imprensa os esclarecimentos que ele, freqüentemente disseminava com os próprios romeiros, numa linguagem simples e direta, muito compreensível ao seu entendimento. É o caso da origem desta devoção que se celebra a cada dia dois de fevereiro. Ele dizia que “é porque a festa de Nossa Senhora das Candeias é a primeira festa de Nossa Senhora das Dores que existia no calendário, porque é o dia em que Nossa Senhora apresenta o menino Jesus no templo e escuta do velho Simião a profecia de que uma espada de dor traspassará seu coração. O padre Cícero que não podia celebrar a missa, benzia as velas lá na casa dele e vinha assistir a missa da purificação de Nossa Senhora. Como a devoção de Nossa Senhora aqui é envolvente essa festa é a mais antiga de Juazeiro.”

- Pe. Murilo nos esclareceu como foi estabelecida a Procissão dos Caminhões, em 1974. “As coisas aqui vão nascendo conforme os romeiros descobrem. Eles têm uma mania de pedir para benzer os caminhões, e para eu não estar benzendo todo dia um, eu preferi juntar todos e dar uma recepção a eles, e fui me lembrando que talvez isso significasse muito pra eles. Realmente, o caminhão de romeiro e o ônibus que não vai pra essa procissão é como se fosse uma dor na alma do romeiro. Quando ele faz a promessa de vir, ele já se inclui como participante dessa noite festiva, dessa tarde festiva, tarde que Juazeiro atende ao chamado, por exemplo, nós pedimos a rua São Benedito para que as pessoas fossem para as esquinas, levando um pouquinho d’água, para o romeiro menor, para a criancinha que vem em cima do caminhão e que desde um hora da tarde esta agüentando o sol de setembro.”

- Uma das cenas comuns nas romarias de Juazeiro do Norte é o ritual do romeiro e o chapéu que ele carrega na cabeça por todo o seu trajeto nos dias em que passa na cidade e para muito além da cidade, no seu retorno. Pe. Murilo nos esclarece este comportamento, porque “o chapéu de palha é um companheiro de todas as horas do romeiro, e as coisas mudaram, antigamente era falta de respeito você entrar na igreja com chapéu. Mas, se for o chapéu de palha, aí é um ornamento, faz parte da indumentária romeira, então, como a minha visão é popular, se hoje numa festa de casamento se coloca chapéu nas damas para ornamentação e elas entram, por que o romeiro num pode entrar com o chapéu? E, em segundo lugar porque é bonito, é um símbolo de nordestinidade e da nossa romaria.”

- E sobre Juazeiro e Canindé, o que ele nos dizia? “A nossa romaria ela é pura e é nordestina, você não vê isso em Canindé. Há muita diferença. Primeiramente, a de Canindé não é nordestina, ela é cearense, riograndense do norte, e piauiense, embora seja maior a presença do Ceará, 200 vezes maior do que a presença do Ceará em Juazeiro. Porque aqui no Juazeiro houve as mãos da proibição da hierarquia. Enquanto lá em Canindé fazem é escangalhar. Pra você ver o que é  peso de discurso. Hoje nós temos caminhões e ônibus da Serra Grande aqui, e nunca houve isso. Gente de São Benedito, de Viçosa. E todos os domingo vem cinco ônibus de Fortaleza, isso não só significa que a romaria de Juazeiro está puxando gente de Fortaleza, mas significa que muita gente do interior foi morar em Fortaleza e não perdeu a devoção.”

- E a Romaria de Novembro? “Ela tende a ser maior, porque cada romeiro que assistiu e gostou, vai trazer um, não precisa você fazer propaganda de romaria no Juazeiro, receba bem o romeiro, que é ele quem vai dizer que rancheiro fulano de tal é ladrão, que beltrano não atende ele, nem que o padre fulano de tal acolhe você. A festa de novembro desse ano (1989) já vai ser muito grande. Porque agora houve umas incidências sérias, as chuvas em Alagoas, as enchentes no Recife... Como eles não podem deixar de vir, vão vir na festa em novembro. Em novembro vem também estudante demais, porque é feriado, e é também muito animado. A festa da padroeira também ainda tem um aspecto social muito forte, comunitário. É um momento de lazer, essas pessoas que vivem morrendo de trabalhar lá no cabo da inchada, na zona da mata, elas vem pra aqui se encontrar, dançar em carrossel, ir pra festa, ir pro cinema, esse tipo de coisa.”

- Pe. Murilo sempre atendeu a muitos chamados para celebrar a festa anual da renovação do santo, da consagração de residências de tantas famílias ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria. Ia, divertia-se muito com os encontros e as conversas, principalmente porque, às vezes, as filhas e até mesmo a dona da casa tinham sido suas alunas na Escola Normal. Muito comedido com o que lhe era servido, sempre preferia uns biscoitos. Numa destas ocasiões a filha de uma paroquiana foi até à sua casa e o convidou para presidir a renovação. Ele aceitou e fez a seguinte recomendação: - Não façam muita coisa para o lanche, não. Bastam uns salgadinhos, cajuína, biscoitos, o café do santo, e tá bom. - Também umas bolachinhas sete capas, não é, padre? Não, minha filha, compre não. Bolacha sete capas “bréa” tudo.

- Era a tardinha de sábado, a hora combinada para nos encontrarmos na casa paroquial. Quantas vezes nesta nossa reunião habitual com Murilo ele nos levava, Daniel, Zé Carlos Pimentel e eu, ao convívio de suas irmãs no casarão da família em Barbalha. Era uma animação, como nos recebiam. Ele aproveitava para se estirar numa ótima rede que já estava armada mais para o fundo da casa, como se esperasse o bom filho que à casa paterna voltava. De lá, ficava nos observando, nossas conversas com as suas irmãs. Naquele dia, Libânia procurava me envolver com alguma coisa que poderíamos fazer juntos, no aniversário dele que se aproximava. Ele captou a coisa de longe. Quando percebi, já foi o grito vindo de lá: - Renato, não vá nessa conversa de Libânia, não. Se você cair na dela, nunca mais você vai ter sossego na sua vida.

- Em muitos anos o Pe. Murilo cuidou de realizar na Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores, ao meio dia do 15 de setembro de cada ano, uma cerimônia muito tocante com a qual ele dava uma bênção especial na despedida dos romeiros. À medida que isto foi ganhando força, participação, maior era a sua satisfação em realizá-la. E com isto, trazia a imprensa, especialmente a televisiva, para um novo enfoque de toda a ambiência do romeiro na terra do Pe. Cícero. Algumas vezes nos dizia com mágoas que “a televisão vinha e fazia uma espécie de ridicularização da romaria, falando de aspectos da pobreza, da fome e da miséria, enfim, o exibicionismo de um discurso panfletário que colocava muito mais em evidência os pontos negativos do Juazeiro. Pastoralmente, nós fomos fazendo frente a esse tipo de agressão e colocando a realidade que Juazeiro congrega em si.”

- Sua vida missionária e a dedicação ao povo romeiro foi tomando conta de sua existência a ponto de transmitir a nós um grande sentimento de realização pessoal. Assim, quando alguém indagava se de fato ele era feliz, se estava contente com os resultados que a paróquia alcançara por aqueles dias, se podia ouvir as seguintes revelações que colho em entrevista, num fim de romaria:  “Eu acho bom, eu me canso, me mato, sei que a minha vida vai ser mais breve por causa do cansaço. Não tem quem agüente. Todo mundo ficou dormindo. No outro dia, eu me levantei as quatro e meia. É que o romeiro pra mim, eu sou sincero, é uma pessoa de Deus.”(...)“Antes de mais nada, eu vejo no romeiro aquilo que eu prego. Pra mim eles são os bem aventurados.”(...) “...me desgasto, pego briga aqui quando um cabra bole com um romeiro.”

- De Pe. Murilo sobre o Padre Cícero: “Eu o tenho como a figura de um padre vinculado historicamente à igreja do final do século passado e altamente comprometido em defender essa igreja de seus inimigos. Esse comportamento, eu chamo de apologético. Padre Cícero, na realidade, foi um padre encravado no contexto histórico, de grande zelo pela igreja e a fidelidade em zelar pelos sacramentos, pelo Conselho, pelas devoções do Coração de Jesus, de Nossa Senhora das Dores e do Santíssimo Sacramento. Eu o coloco dentro desse contexto de povo, numa realidade em que o padre se tornou verticalmente, um homem que quis levantar o seu povo. Parece-me que eu o vejo cada vez mais com o objetivo de criar uma comunidade que soubesse rezar e trabalhar. Este é o retrato fiel de um padre que batalhou sobretudo com honestidade, dentro do quadro cultural da época em que viveu.”


- Era a missa de 9 horas de um domingo, depois da romaria de setembro de 2005. Na homilia, Murilo se reportava à parábola do evangelho (Mt:20,1-16-Os trabalhadores da plantação de uvas: aqueles que são os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros). Um débil mental perturbava o ambiente, até subindo no móvel que suportava o sino da igreja, que havia sido retirado para a homenagem de seu centenário. O maluco acusava o vigário de chamá-lo de vagabundo. Pela intervenção de Ciço Preto, vendedor junto à igreja, o homem foi retirado da igreja, pois estava visivelmente drogado e portando uma faca. A contra gosto, Pe. Murilo compareceu à delegacia, registrou o BO e o homem foi solto. Daí por diante, os cuidados levaram a que a vida do vigário fosse acompanhada por vigias, o que muito lhe constrangia. 

- Durante muitos anos Pe. Murilo viveu com um dilema que muito lhe consumia: o mercado no patamar da igreja-matriz. Não era que ele não suportasse a dita “comercialização da fé”, mas porque isto provocava a cada romaria, principalmente as maiores, um transtorno urbano considerável. Suas confidências a respeito estão parcialmente registradas no Livro de Tombo da paróquia, onde ele escrevia sobre suas ações de forma a conter aquele problema, sem sucesso. Era um sonho que ele nutria para viver o dia em que se livraria o grande espaço da igreja para o uso exclusivo do ir e vir do romeiro. Nunca conseguiu, e talvez nunca se conseguirá, em nome deste seu sonho. Aí se vivia o conflito que se estabelecia entre o desejo do vigário e as autorizações da Prefeitura, coisa que entre ambos não havia acerto, mas constantes desapontamentos.

- Tivemos Pe. Murilo como guia espiritual em três romarias pela Europa. Havia uma horinha, no final da tarde, se estendendo pela hora do jantar, ao sabor de um bom Chianti, para comentar sobre as coisas do dia, onde repassávamos, também, o comportamento e as expressões de simplicidade dos romeiros, sempre com boa dose de humor. Numa destas, estávamos em Veneza e admirávamos a maravilha do interior da basílica de São Marcos. Acerca-se de mim e de Pe. Murilo, Seu Cidrônio, figura muito conhecida no Juazeiro. Observando a curiosidade do paroquiano, Murilo diz ao amigo: Ouviu aí Cidrônio, a guia está dizendo que a obra durou 200 anos e foi feita com ouro do Brasil. Cidrônio fica pensativo e por último responde ao vigário: “É, Pe. Murilo, roubaram nosso ouro, mas fizeram bem feito”. O riso do vigário nos levou, correndo, para fora da basílica.

- A situação financeira da Casa Paroquial nunca foi ruim. A generosidade da nação romeira sempre foi maior que todas as dificuldades. Sobre a sustentação do vigário e de seus padres surgiam comentários que, por vezes, abriam feridinhas. De um certo tempo para cá, Murilo tinha duas aposentadorias: como professor da Escola Normal e pela Previdência Social. Da Diocese de Crato, como padre, tinha direito a uma renda de três salários mínimos. Estes três valores nem, sempre cobriam completamente as necessidades de uma casa com tantos funcionários e demandas de gastos. Às vezes, nos falava das estórias que lhe levavam, que tinha uma vida de nababo: Esse povo daqui pensa que padre não almoça e janta, que padre não tem dor de barriga, que padre não usa cueca, e por aí, ia nos distraindo, sempre bem humorado.   

- Vocês não imaginam a tristeza que ainda nos abate com a grande ausência dos nossos encontros semanais, sempre às 15 horas dos sábados. Já lhes falei sobre isto. Principalmente quando saíamos da Casa Paroquial e íamos rodar pelos quatro cantos do Juazeiro, entre as Grotas, o Mutirão, a Timbaúba e o Horto. Há muitos anos, íamos na direção das obras da nova avenida Ailton Gomes. No carro, à frente, ainda sem ar condicionado, vidros abertos, bem identificado, Pe. Murilo estava de batina preta e o povo pela rua ia saudando-o. Dado momento, tínhamos que passar por um trecho na zona do meretrício. Achando aquilo estranho, Pe. Murilo pergunta, o que isso aqui? E Daniel responde: é o cabaré de Luiz Dantas. Home, vamos sair daqui ligeiro. Não deu tempo. Lá de dentro saiu uma mulher, mal vestida, e já gritando: Pe. Murilo, Pe. Murilo!!!! Me dê uma bença.

- Entre os anos 77 e 80, enquanto fazia o meu doutoramento na USP, eu morei em São Paulo. Uma grata surpresa foi recebê-lo em nossa casa, nos arredores do campus da Cidade Universitária. Para espanto da vizinhança, foi batendo e gritando: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo ! Visita do vigário da Mãe das Dores, aos romeiros do Juazeiro e do padre Cícero. Uma festa! Nesta oportunidade, a convite da CNBB, ele tinha ido participar de um evento sobre Romarias, no Santuário de Aparecida. Não ficou conosco, tanto insisti. Preferiu ficar na casa do vigário da Penha, na zona Leste de São Paulo, pois queria conhecer de perto como se fazia o atendimento ao romeiro. Ele me dizia que queria tanto aproveitar estas viagens para ver todos estes centros de romaria e se possível voltar para o Juazeiro com algo de novo que nos reanimasse na caminhada.   

- O Pe. José Alves de Oliveira estava começando o seu trabalho na Paróquia de Nossa Senhora das Dores na condição de vigário cooperador, função que lhe ocuparia por 16 anos. Nos primeiros anos, o Pe. José Alves residiu na Casa Paroquial e em substituição ao Pe. Silvino Moreira passou a ser o encarregado dos serviços religiosos na capela do Socorro. Por sua simpaticíssima figura, e grande dedicação aos serviços paroquiais, Murilo via o Pe. José Alves como uma pessoa incansável no atendimento das necessidades da Paróquia. Algumas vezes presenciamos a saída de Pe. José Alves ao sabor de uma indagação de Pe. Murilo: Pra onde tu vai Zé? Ao que o Pe. José Alves dizia, vou celebrar, ou vou fazer um casamento. A resposta de Murilo era bem humorada - Zé, tu morre, Zé.

- No começo dos anos 70 eu levantava o documentário da Questão Religiosa de Juazeiro e como me impressionava muito este conhecimento novo, com centenas de documentos e uma estória muito intrincada e cheia de bastidores, eu escrevia uns artigos para a imprensa e os submetia ao Murilo. Trocávamos idéias e ele me reforçava com ótimas pistas para continuar estudando.  Numa destas eu me detive sobre o roubo dos paninhos ensangüentados que teriam ido parar na casa de Zé Marrocos, pois ele, reconhecidamente, os tinha roubado da Matriz do Crato. Eu insistia na possibilidade de encontrar pelo menos um destes paninhos para realizar testes e exames químicos para esclarecer. Nunca me esqueci que, bem objetivamente, ele me sentenciou: - Renato, no fenômeno do Juazeiro, o que menos importa é o sangue ! Algum tempo depois eu fui entender o recado.
  
- O dia do aniversário do vigário era um festa: visitas, telegramas, telefonemas, manifestações, presentes. De tudo acontecia entre os alunos da Escola Normal, as confrarias, os paroquianos e muita gente romeira pelo Nordeste. Pouca gente sabe que numa destas manifestações, na igreja Matriz, a Pia União prestou ao Pe. Murilo uma pequena homenagem e lhe entregou de presente uma bonita camisa. Ele ficou numa alegria de menino. Quando chegou à casa paroquial comentou e mostrou o presente ao vigário José Alves de Lima. Sabe-se lá o porque, mas num acesso de ciúme, talvez, Mons. Lima tomou-lhe das mãos a camisa, jogou-a no chão e, numa atitude horrorosa, pisou e danificou a camisa. Aquilo provocou um enorme choque no Pe. Murilo. Por vários anos, ainda enquanto existiu Mons. Lima, Pe. Murilo procurava celebrar seu nascimento da forma mais discreta possível.  

- Tendo sido meu confessor e amigo por tantos anos, seria desonesta de minha parte dizer que pelo menos uma vez eu não tenha gostado de uma atitude sua ou de algo que me tocasse, fosse até por uma simples opinião. Pouca chance tínhamos para isto, pois ele era o conselheiro, o amigo leal e um colaborador de grande valia. Mas, quando já tínhamos realizado duas exposições fotográficas, Daniel e eu sonhávamos com um abrigo permanente para o acervo, na forma de um Arquivo Fotográfico, num dos imóveis da Paróquia. Procurei induzi-lo na cessão do velho casarão da Rua Pe. Cícero, onde funcionara a loja de Joaquim Mancinho, adquirido pela Paróquia, para que ali instalássemos o dito museu. Não foi possível. Alguns tempo depois, feita a reforma do prédio, ele nos falou que o destinara para a Associação dos Artesãos da Mãe das Dores.   

- O general Milton Tavares de Sousa, linha duríssima no Exército, dirigia a 10ª Região Militar em Fortaleza e foi ao Cariri. Levaram-no para visitar o vigário Murilo de Sá Barreto. O general foi recebido com muita simpatia pelo vigário e conversaram sobre a vida paroquial e as romarias. Pe. Murilo mantinha um enorme viveiro de pássaros, aproveitando uma área da casa paroquial que fora fechada em cima com uma tela de arame. O general se pôs a observar os pássaros, e acompanhado por Pe. Murilo, comentou: Pe. Murilo, que bela criação de pássaros o senhor tem aqui em sua casa. E, ainda mais, eu estava observando que eles aqui vivem em “completa liberdade”, não é mesmo? No que o Pe. Murilo lhe diz: “ - Não é bem assim, general. Aqui eles vivem em liberdade “vigiada”. O general não se abalou com a provocação e a piada ficou para o folclore da paróquia. 

- No sétimo dia da morte de Luiz Gonzaga, Daniel Walker, Aguinaldo Carlos, eu e Pe. Murilo fomos a Exu. O vigário tinha sido convidado para celebrar a missa no fim da tarde. Quando lá chegamos encontramos na casa a família do Gonzaguinha e uns poucos amigos, principalmente alguns cratenses. Mas, eram poucos os do Exu que ali estavam. O horário devia ser quatro da tarde, mas não apareciam as pessoas da cidade. Murilo foi tranquilizando a família que esperaria e o horário foi sendo refeito: 4:30, 5:00. A uma certa hora, Pe. Murilo chama um garotinho e lhe diz: “vá chamar o pessoal para a missa, e diga que foi o Pe. do Juazeiro que veio celebrar”. Já indo para 5:30 da tarde começaram a vir umas poucas pessoas, e a missa pôde ser realizada. Na volta, Pe. Murilo “profetizava”: “o Lua ainda vai ser muito mais lembrado no Cariri do que por estas terras”. 

- Nós realizamos a I Exposição Fotográfica do Juazeiro Antigo, em 1971, com o apoio de Pe. Murilo, no Edifício D. Pires. Para nós, aquilo também era um evento da celebração do dia do município, na administração de José Machado. Mas, não estava na programação oficial da Prefeitura. Pe. Murilo nos indicou, José Carlos Pimentel e eu, para irmos ao então superintendente da SUDEC, Dirceu de Figueiredo Neto, para conseguir dinheiro. Lá, na ante-sala do secretário, encontramos Zé Machado e foi a oportunidade de lhe falar sobre o que estávamos preparando. A reação de Zé Machado foi uma graça. “Diga lá para o Pe. Murilo para nos ajudar. Tenham pena de mim que sou um “fi-duma-égua”. Pimentel e eu caímos na gargalhada. E ele também. Abraçamos-nos e foi assim: no dia do município, Zé Machado e Pe. Murilo abriram a exposição e o sucesso foi grande. 

- Voltando de uma viagem a Roma, em 1996, contei ao Pe. Murilo que estivera na igreja de São Carlos, conhecendo a igreja onde o Pe. Cícero se hospedara em 1898. E lhe falei de uma ideia que me ocorrera de voltar lá, numa “romaria” para celebrar aquele centenário, em outubro de 1998. Ele ouviu atentamente e ao final concordou com a ideia. Começamos a planejar e uma empresa do Recife assumiu a operação. Iniciamos a divulgação em busca de adeptos e os reunimos, enfim, em 45 pessoas. No dia 8 de outubro de 1998, às 18 horas, em Roma, (meio dia no Juazeiro) estávamos todos reunidos na igreja de São Carlos Borromeu. Pe. Murilo celebrou a missa do centenário, e por quase 60 minutos, Zé Carlos Pimentel e eu transmitimos por telefone celular aquele momento que ficou em nossas vidas como uma graça dos céus. 

- Por diversas vezes, em nossas reuniões, aos sábados, às 15:00 horas, depois da criação da Urca, nós levamos para a casa paroquial as preocupações com respeito à regionalização da nova universidade. Um dia lhe contei que a profa. Cícera Germano Correia, então dirigente da Delegacia Regional da Educação em Juazeiro, me convidara para participar de um Seminário, onde teria a oportunidade de expor o que seriam os critérios juazeirenses desta tal regionalização. Consultei-o e ele me encorajou. Trocamos ideias e as coisas foram amadurecendo. No dia, felizmente isto está por escrito, expus com serenidade como entendíamos a nova universidade, com seus braços estendidos sobre nós. Ali estava nascendo o Instituto José Marrocos de Pesquisa e Estudos Sócio-Culturais – IPESC que, com o apoio de Pe. Murilo foi um dos marcos da nossa vivência na Urca. 

- Em 1984, na celebração dos 50 anos de morte do Pe. Cícero, o Lions Clube de Juazeiro decidiu acatar uma sugestão do Dr. Geraldo Barbosa para publicar uma Revista Documentária. Dr. Geraldo procurou o Pe. Murilo para obter apoio e colaboração quanto às matérias que seriam enfeixadas. Num sábado, na reunião costumeira, Pe. Murilo nos diz que logo em seguida Dr. Geraldo nos apresentaria o projeto para que pudéssemos colaborar. Do projeto, era o boneco da revista, havia algumas colagens de velhas matérias que foram substituídas, a partir do apoio do Pe. Murilo. Quanto ao título, Pe. Murilo provocou: Renato, dê uma sugestão. E eu lhes disse que simpatizava com o título de Memorial. E foi o que aconteceu. Nós fizemos a ilustração fotográfica e redigimos textos. Junto ao BNB nós acompanhamos a feitura gráfica da revista. Ficou maravilhosa. Nova encomenda só viria em 1994. 

- Certas reuniões de sábado aconteciam dentro de um carro, pois circulávamos pela cidade e arredores, em busca de se conhecer um pouco mais desta Juazeiro que o Murilo não se cansava de dizer: “É um mundo”. Então, havia a linguagem que o Daniel cunhara para expressar que saíamos da casa paroquial para conferir o “habite-se” das obras públicas de diversas administrações. Na segunda feira, ou às vezes, mesmo no domingo, ele já nos dizia que a turma da prefeitura, ou até o Sr. prefeito, o tinha procurado para saber o que tínhamos achado do andamento da obra e se havia alguma coisa a completar ou até mesmo a desfazer. Como chegávamos em horário em que nada havia na obra, apenas encontrávamos o vigia. Depois sabíamos que a gente da prefeitura indagava: - Apareceu alguém por aqui ? Não, respondia o vigia. Só Pe. Murilo e uns meninos. Era o que bastava, e era um riso só. 

- Sábado à tarde era um bom momento para ir ver o movimento de ultra-leves no aeroporto da cidade. Naquele dia estava havendo algo mais. A freqüência era grande. Paulo Herialdo e a turma do aeromodelismo, Ari Queiroz, Marcos, Newton... Daí a pouco aterrissa Ari Queiroz. Ao ver o vigário por ali, o Ari logo se entusiasma para provocar o Murilo. “Pe. Murilo, que maravilha, o sr. aqui nos visitando. Vamos, aproveitar Pe. Murilo, e vamos dar um passeio lá por cima, vamos ver todo o Cariri, a Barbalha, sua terra, o Juazeiro, chão que o Sr. ama tanto, o Crato de D. Vicente (risos). Meio desconfiado, Pe. Murilo desconversa e não aceita. O Ari volta a investir: Pe. Murilo, você vai gostar. Vamos lá em cima, lá pertinho de Deus. Ao que o vigário responde, definitivamente: - Ari, meu negócio é aqui em baixo, pertinho dos homens. 

- Pe. Murilo fez uma reforma no velho Círculo Operário São José e nos chamou naquele sábado para ir ver as novas instalações, com as quais dava melhores condições para o funcionamento das associações. Fazia uns anos que não ia lá. E até me emocionei em ver o velho casarão, onde minha mãe nos alfabetizou (a mim e a minha irmã-Ana Célia). Quando Pe. Murilo chegou ao Juazeiro, em 1958, Doralice Soares Casimiro ainda era professora no Círculo Operário e com sua voz forte se fazia ouvir até na casa do vigário, ao lado. Murilo nos disse que até o velho papagaio da casa repetia as lições que Doralice dava aos seus alunos, principalmente aquelas lições mais simples da alfabetização, com a velha carta de ABC. Às vezes era insuportável a longa repetição diária do papagaio. Por minha sorte, me disse ele, Doralice logo se aposentou. 

- Meus pais completaram trinta anos de vida conjugal, e houve missa rezada na igreja Matriz, por Pe. Murilo, no altar lateral de Nossa Senhora de Lourdes, “a sede” da Pia União das Filhas de Maria – associação a que minha mãe pertencera. Simbolicamente, também, este era para minha mãe o canto ideal, pois ali, ela e Luiz Casimiro, em dezembro de 1948, tiveram a bênção de Mons. Joviniano da Costa Barreto. Na hora da comunhão, minha mãe apela para Pe. Murilo para que ele faça uma confissão, seguida de comunhão comunitária, pois ela gostaria muito que toda a família comungasse naquela hora. Murilo chega pertinho dela e diz: - Doralice, não é possível o que você está pedindo. Eu dei uma olhadinha na assistência e acabo de ver que chegaram Silvanir e Ananias Araújo. O meu problema é que se, de repente, ele resolve comungar, nós estamos perdidos... 

- Torcedor famoso do Vasco da Gama, algumas de suas estórias foram para o folclore da cidade. No dia em que o Vasco jogava, e para cumprir o horário das 19 horas da missa do domingo, Murilo saia de casa sem o resultado final da partida. Jason Sobreira, também vascaíno, passava pela igreja e dava a notícia, na sacristia. Num jogo determinado, Jason já foi chegar tendo a missa iniciada. Do meio dos fiéis, ele ficou fazendo sinais para chamar a atenção do vigário no altar, até falando alto (Pe. Murilo, ó...) e fazendo gestos com os dedos, indicando que o Vasco tinha ganho por 1 x 0. No dia seguinte eles se encontram e Pe. Murilo o repreende: Jason: meu amigo, não dá para você ficar fazendo obscenidades no meio da igreja, perturbando a minha missa, só pra me dizer que o Vasco ganhou a partida. O que é que o povo vai pensar de nós dois ?” 

- No texto da Comenda Memória do Juazeiro eu pedi à AFAJ – Associação dos Filhos e Afilhados de Juazeiro do Norte, para escrever: Francisco Murilo Correia de Sá Barreto. Foi Armando Lopes Rafael quem nos relembrou esta grafia para o nome mais completo de Pe. Murilo. Cartorialmente, não é assim, não existe, legalmente. O Correia, referido, vem da sua herança do lado materno, pois dona Maria Laudelina, sua mãe, era dos Correia de Macedo de Barbalha. Armando me lembra que ele ficava muito satisfeito quando assim era saudado, pelo grande amor que tinha à sua mãe, com quem pouco conviveu. Aliás, como também recorda Armando, é assim que está no santinho da lembrança de sua ordenação sacerdotal 

- Na saída do Hotel Meliá Los Galgos, em Madrid, em setembro de 1998, eu me encontrei com D. Eugênio Sales e outros padres que estavam indo para um compromisso em Santiago de Compostela. Alguns anos antes eu tinha feito uma breve palestra para os padres do Colégio Pio Brasileiro e lhes falara que viríamos, os romeiros do Juazeiro, para a celebração do centenário da permanência do Pe. Cícero em Roma. D. Eugênio ouvira atentamente o que relatara sobre o centro de romaria do Cariri. Então lhe disse, àquela hora, que ali estávamos, a caminho do prometido. Ele lembrou da falação e me disse: eu não duvidei de sua vontade. E perguntou, quem está orientando o grupo? Pe. Murilo, da Paróquia de Juazeiro, disse-lhe, apontando o vigário. Pe. Murilo veio e foi apresentado. Os dois se abraçaram e conversaram um pouco. Depois seguimos viagem. 

- No Jubileu, no ano 2000, romeiros do Juazeiro estávamos na Basílica de São Pedro em Roma. Já tínhamos cumprido o ritual da passagem pela Porta Santa e conversávamos em grupos. Quando nos reunimos, já para voltar ao ônibus soubemos que alguns tiveram a sorte de se encontrar com D. Lucas Moreira Neves. Pe. Murilo o reconheceu, se apresentou e ficaram conversando por uns instantes. Ele dissera, por exemplo, que quando estava em Roma, vinha por aquela hora para suas orações em São Pedro, velho costume da sua longa permanência ali, antes de ser o arcebispo-primaz em Salvador. Naquele dia ele estava acompanhado de um outro cardeal, seu amigo. Por ele se soube que se tratava de Joseph Ratzinger, que passara por ali quase incógnito. Nem Murilo, nem ninguém se daria conta de que Ratzinger, hoje Bento XVI, seria tão importante para a causa da reabilitação. 

- Nos horários das missas dos domingos, muitos amigos de Pe. Murilo não faziam por menos: passavam pela sacristia para cumprimentá-lo, antes ou depois da celebração, e aproveitavam para pedir um conselho, dizer uma fofoca, benzer um santo, um terço, um rosário, contar uma historinha. De tudo aparecia... Bem humorado, Pe. Murilo recebia aquelas conversas e algumas confidências como ótimo passatempo, uma terapia para o seu espírito alegre e brincalhão, um instante em que sempre se confraternizava com os paroquianos. Mas, ele tinha um elevado censo crítico e sabia com maestria interromper a conversa se ela descambasse dos seus padrões éticos e morais. Uma vez, a este respeito, ele me disse, com aquele sorriso maroto: “O Espírito Santo iluminou a criação do altar e o demônio, por vingança, inventou a sacristia.” 

- O Pe. Antonio Onofre de Alencar, pároco de Nossa Senhora de Lourdes, velho amigo de Murilo, dirigiu por muitos anos a segunda paróquia de Juazeiro, proclamada no episcopado de D. Vicente de Paulo Araújo Matos, com quem dividiu por muitos anos a atenção para com a vasta dimensão da paróquia-matriz. Doente por velhice, teve que renunciar ao seu paroquiato, afastando-se para tratamento de saúde. Sem ainda ter como solucionar casos como estes, o bispo D. Fernando Panico procurou Murilo para uma solução quanto aos cuidados com Pe. Onofre. Murilo procurou o cel. Humberto Bezerra e a solução foi a construção de um aposento especial, um apartamento em separado, na Casa do Idoso, nas Malvas, dando melhor tratamento e privacidade a Pe. Onofre, que se encontra lá, desde então sob atencioso e dedicado cuidado. 

- Todos no Juazeiro conheciam a informação que Pe. Murilo tinha muito gosto com o seu viveiro de pássaros e pela manutenção de outros animais (o macaco Chico, o papagaio, o ferreiro e a cachorrinha). Houve um tempo em que não tínhamos a vigilância severa do Ibama e as pessoas o presenteavam e os animais eram admitidos à grande gaiola junto de seu quarto e gabinete de trabalho. Depois a coisa foi ficando insustentável. Quando se apreendiam animais silvestres pela cidade, logo se dizia: vocês prendem o meu e não vão prender o de Pe. Murilo. Assim ele foi recebendo aquelas indiretas, e intimidado fechou de vez o viveiro. O Chico, por exemplo, foi parar na Serra do Araripe, tendo alguém o levado para lá. Dizem que quando Pe. Murilo voltou lá a festa foi grande. Com Alzirinha, na Av. Leandro Bezerra, estão o papagaio e a cachorrinha. Os outros foram para a liberdade, que não mais é vigiada. 

- Sem que Pe. Murilo soubesse, antecipadamente, Marcílio Sobreira (o monge, como ele chamava), retirou a estátua de Nossa Senhora das Dores (a velha estátua, da igrejinha de 1827- para muitos, a que tem os brincos) que estava no nicho, do lado esquerdo, próximo ao altar-mor, que foi construído especialmente para a celebração do sesquicentenário do Santuário, e substituiu por uma estátua em gesso do Pe. Cícero. Entrando na igreja, Pe. Murilo viu a presepada e determinou, imediatamente, a retirada da estátua do nicho, dizendo a Marcílio: o lugar do Pe. Cícero ainda não é aí. Algum tempo depois ele determinou a construção da repica da igrejinha de 1827, que está junto da entrada da sacristia, e lá Pe. Cícero foi entronizado. Mas, aí já era por sua completa autoridade em fazê-lo, fruto de sua inteira conversão à causa do padrinho. 

- Maílson, administrador do Cemitério do Socorro e Gilberto Sobreira, empresário de artes gráficas, ambos da confraria da Irmandade do Santíssimo Sacramento, tiveram a ideia e passaram a realizar às sextas-feiras, depois da missa das 19 horas, o terço dos homens. Um dia, Maílson, já candidato a vereador, apareceu a Murilo para pedir o seu apoio e comentar a campanha. E aí, Maílson, quantos votos você acha que vai ter? Eu acho que vai pra mais de 1000 votos, Padre, diz Maílson. Então, assim, Maílson, você já tá eleito. Mas, se for como no terço dos homens que você me dizem que tem pra mais de 200 e outro dia eu só contei uns 30, a coisa não vai dar certo, não. Maílson não foi eleito mesmo. Mas, sobre o que fizeram, ele e Gilberto, com a realização semanal do terço dos homens, Murilo não economizava elogios: Você, Maílson, ainda vai entrar na História. 

- Milton Sobreira da Cruz, antigo funcionário da CELCA, era um grande amigo de Pe. Murilo. No Juazeiro, sempre se visitavam. Mais recentemente, quando vinha a Fortaleza, era das visitas que mais apreciava. Isto vinha de longe, pelos laços de afeto por dona Dina Sobreira, mãe de Milton, velha colaboradora da paróquia, e de suas confrarias, e dos tempos em que Milton e Pe. Murilo eram da Escola Normal, colegas de magistério. Nesta época, lembram alguns que de tudo Milton confidenciava a Murilo. Até mesmo o resultado de um exame de fezes que assaltara o Milton com a presença de alguns infectantes, marcados no laudo com muitas cruzes. Murilo reagiu bem humorado: Ô Milton, você não é Cruz, então um exame deste tem mesmo que dar muitas cruzes. Além do mais, você é de uma família muito religiosa. Só podia dar nisto.

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